A beleza da violência em Apocalypto

O sucesso comercial de Apocalypto poderá deparar-se com vários entraves, desde o uso de uma língua quase morta e completamente ininteligível para a maioria, até à recente publicidade negativa que o álccol e os impropérios anti-semitas de Mel Gibson lhe trouxeram, passando pelo frenesi de acusações de violência excessiva e desnecessária.

A verdade é que as legendas servem para alguma coisa e o alcoolismo de Gibson não me afecta rigorosamente nada enquanto estou no cinema, tal como o alegado anti-semitismo, já que no filme não me pareceu que a razão atribuída à queda da civilização maia tivesse alguma coisa a ver com judeus. A não ser que me tenha escapado alguma coisa.

A violência, o banho de sangue, as entranhas e a tortura que fizeram as almas mais sensíveis bradarem aos céus são verdadeiras, estão lá, bem à vista de todos, e não há espectador que não se tenha retorcido umas poucas vezes na cadeira. Desnecessário? Não me parece. Muitas das cenas causaram-me desconforto mas este é, na minha opinião, necessário e intencional. O filme retrata uma civilização primitiva num estado de guerra, a luta pela sobrevivência ao nível mais básico, instintivo e físico. A violência é crua, directa e brutal, servindo não só para nos infundir o medo e o terror experimentados pelas personagens, mas também para expressar a brutalidade e o animalismo da luta e da época, criando a atmosfera de decadência civilizacional e proporcionando uma visão dos extremos de selvajaria alcançados perante a iminência do declínio.

Claro que depois de se ter verificado o mesmo tipo de polémica com a Paixão de Cristo, e mesmo com Braveheart (a já clássica cena do esventramento), o espectador já entra no cinema de pé atrás, perguntando-se se tanto castigo terá uma explicação e uma intenção cinematográfica por detrás, ou se servirá apenas para aplacar alguns dos demónios pessoais de Gibson, ou para lhe satisfazer alguma fixação sádica recalcada. É verdade que Gibson tem mostrado uma clara inclinação para se exprimir através de uma imagística ultra-violenta e de situações extremas que roçam o sadismo, sendo também do conhecimento geral que demónios não lhe faltam. Mas penso que o melhor método será abstrairmo-nos dessas especulações e avaliar cada filme por si só.

Violências à parte, o filme mostra-nos uma civilização perdida, providenciando um retrato assombroso, envolvente e vívido, com uma atenção ao pormenor estimulante, apesar das acusações de inexactidão histórica, tendo mesmo sido dito que o filme confunde a civilização maia com a azteca ou a inca. Mesmo que o mundo retratado seja mais imaginado do que alguma vez foi real, torna-se verdadeiro, quase palpável, levando-nos a acreditar naquele lugar e na sua gente. A profundidade e dimensão das personagens deixa algo a desejar, sendo estas bastante elementares, fazendo pouco mais do que o que já esperávamos delas. Pode dizer-se o mesmo da narrativa, muito simples e linear, que por poucas vezes nos surpreende, mas que sem ceder a grandes descrições ou explicações resulta bastante bem, no quadro básico do thriller.

Jaguar Paw (Rudy Youngblood), o protagonista, vive numa aldeia recôndita e bucólica com a sua pequena tribo, até à chegada de cruéis guerreiros maias que dizimam a povoação, massacrando metade dos seus habitantes e sequestrando a outra metade com o intuito os usar em sacrifícios humanos em tributo aos deuses. Jaguar Paw, entre os cativos, faz a penosa viagem até à cidade maia dos invasores, mas acaba por conseguir escapar. A segunda parte do filme é uma longa fuga pela própria sobrevivência e pelo intuito de tentar reencontrar a família deixada para trás, filmada meticulosa e incansavelmente.

O filme vale a pena, apesar de não corresponder à aura de cinema de autor em que foi envolto, proporcionando um óptimo entretenimento, agarrando a nossa atenção até ao fim, e possuíndo momentos intensos de grande beleza.

    Discordem: 7.5/10

    Discordâncias:

    É um épico com pompa e circunstância, o Ben-Hur dos tempos modernos

    Los Angeles Times

    Não passa de um exercício de puro e amoral sensacionalismo

    Village Voice

8 comentários »

  1. Rui Rocha Said:

    Depois de apocalypse e apocalypto so falta mesmo eucalypto…

  2. Adorei o filme e concordo com tudo o que dizes no post (“milagre” deves dizer tu). O filme é duro. Choca. Mas é apaixonantemente realista.

  3. cláudia lomba Said:

    Não gosto nada do Mel Gibson e desde a Paixão de Cristo que, enfim, nem ouvir falar do homem.. Não é nada pessoal, mas eu acho que ele faz mau cinema, só isso. O “realismo” dele não me interessa nada. 🙂

    Polémicas à parte, Bárbara, gosto muito do blogue. Está aqui uma coisa que sim senhor! 🙂

    Ah, Rui: 😀 😀 😀

  4. As polémicas são bem vindas! Obrigada por discordares! 😉
    E obrigada pelo elogio ao blog, já agora… 😀 Espero poder contar com o humor único do Rui mais vezes, é uma grande mais valia! lolol 😀

    ****

  5. Adorei “Apocalypto” e sou daqueles que defende a sua qualidade avassaladora atrás das câmaras. A sabes que mais Bárbara, por acaso até acho que o filme corresponde à aura de cinema de autor em que foi envolto. Terei de meditar um pouco mais no mesmo e depois revisioná-lo para escrever de forma mais sustentada no meu recanto, mas existem pormenores do filme para meditação sobre a filmografia de Gibson: qual a importância da religião? qual o impacto que regista em cada um dos filmes de Gibson como realizador? quais os seus ângulos temáticos divergentes e convergentes? será que a profecia da miúda também se reveste de ironia, bem como o final? qual a importância da figura paterna em cada um dos seus filmes?

    Belo início de ano cinematográfico no nosso país! Podem acusar Mel Gibson do que quiserem, mas jamais poderão etiquetá-lo como mau-realizador.

    Cumprimentos.

  6. Não o considero mau realizador, pelo contrário, reconheço-lhe grande talento, embora não me consiga considerar aficcionada, ou associar-lhe a expressão “qualidade avassaladora”. Quanto à aura de filme de autor… penso realmente que não corresponde à descrição, apesar das marcas de Mel Gibson estarem bem presentes e vivas na obra. Mas no sentido de obra de culto, que marca uma carreira… é questão de ver o desenvolvimento que o filme terá nos próximos anos. Eu tenho a sensação que poucas cenas estarão vivas na minha memória daqui a 10 anos, caso não o reveja, e que as que estiverem… não será por me terem tocado emocionalmente ou marcado de qualquer forma.
    Quanto a essas perguntas, são interessantes, sim, e talvez fosse pertinente alguém tentar encontrar respostas para elas, mas eu não me considero de modo algum a pessoa indicada para o fazer. Mas terei todo o gosto e interesse em lê-las caso alguém a elas se dedique. 😉

    Obrigado pelo contributo, muito produtivo!

    Cumprimentos.

  7. iori Said:

    achei de mal-gosto .

  8. Vania de Albuquerque Said:

    Concordo com Francisco Mendes. Esse é um filme de aparente linearidade. Jaguar Paw é basicamente salvo pelo Jaguar – puro instinto – e embrenha-se no continente tal como os nossos instintos se embrenharam em nosso inconsciente…


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